O vídeo de Benny

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 Quem acompanha as reviews aqui há algum tempo sabe que eu estou tentando assistir filmes fora do padrão Hollywoodiano, ou seja, filmes produzidos em outros países que não sejam os Estados Unidos, com roteiros e jogo de câmeras, fotografia, elenco e maquiagem idealizados para um publico consumidor de conteúdo bastante seleto e diferenciado. E para manter essa proposta, eu tenho procurado por longas-metragens não conhecidos do grande publico consumidor de cinema popcorn (mas vale deixar claro aqui que eu não tenho nenhum problema com quem assiste esse tipo de filme, até faço as vezes review de alguns por aqui), o fator é pensar fora da caixinha e espero conseguir esse objetivo com esta review aqui.
AVISO: Para melhor analise do filme como um todo, esta review TERÁ SPOILERS.

 Eu já falei de outros dois filmes do diretor austríaco Michael Haneke aqui no meu tumblr antes, são eles “Violência gratuita” e “A professora de Piano”, também cheguei a assistir “Caché”, mas não fiz review deste porque, bom, é o filme mais complexo do Haneke que eu já vi.
O filme “O vídeo de Benny” é considerado até hoje a obra mais perturbadora do diretor, talvez por entre os vários fatores, tratar de assassinato a sangue frio, distanciamento empático de um adolescente e como a mídia áudio-visual pode influenciar as pessoas a cometerem atos chocantes. Vale lembrar que este filme é de 1994 (três anos depois teríamos uma extensão do assunto em “violência gratuita”), mas aqui a abordagem é mais crua e direta.  
O longa começa com uma filmagem de um porco sendo abatido em uma fazenda com uma pistola de ar e eu preciso frisar que a cena será reproduzida novamente pelo menos mais duas vezes no filme. Benny é um adolescente aficionado por filmagem e edição de vídeos e passa boa parte dos seus dias enfiado no seu pequeno quarto que também é uma espécie de ilha de edição.
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Ele vai religiosamente a vídeo locadora alugar filmes e em uma destas visitas que ele vê uma garota do lado de fora da loja. No primeiro momento ele não interage com ela, mas ao revê-la em frente a loja dias depois, aproxima-se e começa a conversar com ela. E aqui vale citar um recurso de gravação muito usado pelo Haneke, em diversos pontos do filme, nós vemos os personagens conversar, mas não nos permitem ouvirmos o diálogo, que só nos deixa a opção de imaginar.
Benny leva a garota para a casa dele, os pais trabalham o dia todo e o garoto fica sozinho no apartamento. Após mostrar a ela suas filmagens cotidianas e servir um lanche, ele exibe a tal filmagem do porco e em seguida, apresenta a ela a arma de ar comprimido usada para abater o animal. Estava na gaveta dele.
Começa-se então uma discussão que poderia ser chamada de infantil, se não fosse o motivo que a desencadeou. Benny quer que a garota atire nele com a arma de ar, ela se recusa e diz por que ele não atira nela? Apesar de eu conhecer o enredo do filme, por alguns segundos ainda tive a esperança de que eles desistiriam daquela provocação e iriam assistir algo ou comer mais alguma coisa. Mas é um filme do Haneke e nada é simples. A câmera sai de foco quando Benny atira pela primeira vez na garota, ela grita de dor, desesperada e nós só podemos ver um pedaço da cena, os pés dela chutando o ar e tentando se afastar dele.
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Este é outro artifício de direção muito usado nos filmes do Haneke, quando algo extremamente violento vai aparecer na tela, a câmera fica em off, nos impedindo de ver e permitindo apenas o áudio e mais uma vez, nos obrigando a imaginar o que está acontecendo. Particularmente eu acho esse tipo de abordagem muito mais perturbadora do que aquelas que mostram gore explícita. Não há nada mais maléfico no quesito imaginar horrores do que nossas próprias mentes.
Enfim, em um ato de desespero para que a garota se cale, Benny pega a arma de ar e atira mais três, talvez quatro vezes nela, dando o ultimo tiro na cabeça. As cenas que se seguem demonstram a frieza do garoto ao limpar o sangue e o cadáver e então escondê-la em seu próprio guarda-roupa. Em seguida ele vai a cidade e entra em uma barbearia, onde raspa completamente o cabelo.
Raspar o cabelo, seja na vida real ou na ficcional, é um ato de extremo desespero, fuga e mudanças bruscas no comportamento e na própria aparência. É uma forma de dizer que aquela pessoa que você era não existe mais. E após esta cena, o garoto começa a ficar violento, agride colegas de escola e as coisas vão se afundando cada vez mais.
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Até que ele finalmente mostra a gravação do assassinato aos pais, os quais, bastante permissivos, estudam formas de dar um fim no cadáver da menina e isentar o filho da culpa. O pai se ocupa de sumir com o corpo enquanto a mãe leva Benny para viajar ao Egito.
Ainda assim, ainda que os pais se comportem dessa forma, é possível notar a repulsa e até o medo que ambos começam a sentir do filho. Em parte pelo ato de assassinato em si e em parte porque o garoto não demonstra o mínimo remorso pelo que fez, ele é um psicopata em desenvolvimento.
O filme em si tem uma carga emocional perturbadora forte demais para quem não está acostumado com esse tipo de abordagem e faz uma crítica social a então “era do vídeo”, o que hoje poderia ser substituido por “era da internet”, já que o descaso com a vida humana, o desespero de registrar tudo em uma filmagem e a apatia pela dor alheia são coisas que continuam em voga hoje em dia.
Não é um material chocante por excesso de gore, violência ou qualquer outro tipo de cena graficamente perturbadora. Não, são as atitudes das personagens que nos enojam, o comportamento apático de Benny e sua total falta de sentimentos, sejam eles de culpa, remorso ou mesmo raiva pelo que fez. Ele é como uma casca vazia.
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Fica claro que Benny não consegue conviver na sociedade, interagindo com outras pessoas e apenas consegue consumir as informações, depois que as assiste através de suas filmagens, como uma vida televisiva, falsa, programada. 
Eu fiz uma pequena interpretação pessoal da cena-chave, o assassinato da menina e gostaria de compartilhar com vocês. Do meu ponto de entendimento, Benny reproduziu na garota o que ele via a exaustão sendo feito ao porco, o que não é muito diferente do que pode acontecer com um garoto que assiste alguma cena de estupro simulado em um material pornográfico e que então, resolve reproduzir na prática a tal cena com uma pessoa aleatória. E observando por este ângulo o filme nos trás o seguinte questionamento, até que ponto uma pessoa psicologicamente instável pode consumir certos conteúdos, sem que estes a influenciem diretamente.  
Isto somado a falta de atenção dos pais para o que o garoto fazia, a permissividade das atividades de filmagem dele, a falta de limites e imposições sobre o que ele registrava e ou consumia, tudo isso também são pontos negativos que pesam sobre o assassinato da menina.
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26 anos depois, o filme ainda continua sendo uma mensagem de alerta bastante atual sobre os perigos de se deixar uma pessoa, no caso aqui um adolescente, se isolar do mundo, do contato humano e da interação com pessoas reais, pois com o passar do tempo, ele começa a criar sua própria ideia de o que é uma boa interação com outras pessoas e que não costuma ser nada saudável.  
A cena final é o que coloca aquela cereja de perturbação nesse bolo indigesto. Logo após a revelação do corpo da garota, ainda no meio do filme, os pais de Benny discutem o que fazer para isentar o filho da culpa, mas, eles não sabem que o pedido do menino para deixar as portas do próprio quarto e da sala de estar abertas, não era remorso ou medo do escuro. Ele estava com uma câmera ligada no quarto, que tinha um ótimo microfone de longo alcance e gravou os pais conversando o que fariam. Depois, editou o vídeo e fez parecer que foram eles, os pais, que mataram e desovaram a garota.
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O filme termina com os pais de Benny, que sacrificaram e passaram por cima de vários detalhes alarmantes, para salvar a vida do garoto, sendo presos e ele fica livre, da cadeia? Também, mas especialmente dos pais. A cena é mostrada através de uma das câmeras do circuito de segurança do prédio onde a família mora, sempre pelas câmeras, sempre por uma filmagem feita por terceiros.
E uma última observação, o ator que faz o Benny, é o mesmo que interpreta um dos rapazes psicopatas em Violência gratuita, então, e isto aqui é totalmente teoria de fã, nada confirmado pelo diretor, eu poderia arriscar dizer que O vídeo de Benny é a premissa de Violência Gratuita e que neste segundo filme, Benny cresceu, trocou de nome e continuou seus assassinatos doentios. Mas, isto é só uma teoria de fã.

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