Aluno inteligente X O Aprendiz (Conto x Filme)
AVISO: Esta review terá spoilers tanto do conto quanto do filme.
Laranja Mecânica foi minha primeira analise traçando um paralelo entre as duas mídias e eu confesso que não via a hora de fazer uma nova analise nesta linha, mas até então não havia surgido outro material que eu quisesse analisar de modo comparativo, até agora.
Em Maio de 2018 eu comecei a ler o conto “Aluno inteligente” que faz parte da coletânea Quatro Estações, escrita por Stephen King e que é composta por, (além deste conto), a Redenção de Shawshank (adaptação em filme: Um sonho de liberdade), O corpo (adaptação em filme: Conta comigo) e O método respiratório (até hoje não adaptado para o cinema) e posso afirmar que ele é sem dúvida alguma o conto mais cruel e repulsivo do livro.
A história fala do garoto Todd Bowder que aficionado pelo nazismo e os campos de concentração, se vê realizado ao descobrir que seu vizinho, o Sr. Arthur Denker é na verdade um antigo comandante do campo de concentração de Patin chamado Kurt Dussander. Tendo esta informação, o garoto começa a chantagear o velho, inicialmente para que lhe conte histórias da época em que servia ao partido nazista e o homem com medo de ser deportado e executado, aceita. Mas esta é só a ponta do iceberg, pois com o desenrolar do conto, as coisas vão ficando cada vez mais fora do controle entrando em uma espiral de violência e matança desenfreada.
No livro o tempo é contato em anos, no filme, é contato em meses, mas a narrativa do filme é bastante fiel ao do conto, com os diálogos doentios do garoto com o ex soldado nazista.
E por se tratar de um filme com duração de quase duas horas, muitos detalhes foram rearranjados, como por exemplo, os pesadelos que Todd tem. No filme eles são apresentados logo no inicio, quando no conto esta cena só aparece após uns dois anos do garoto visitando Dussander.
E falando em Todd, o descrito no livro é um garoto de no máximo 13 anos enquanto que o ator do filme aparenta ter entre 16-18 anos, acredito que esta escolha foi feita para não chocar tanto os espectadores, afinal, se pararmos para imaginar um ator de 13 anos fazendo as cenas atrozes que o personagem desempenha no longa-metragem, seria o bastante para causar um grande impacto.
Durante o filme é utilizado um elemento áudio-visual do qual eu gosto muito, que é a sobreposição de falar. Dussander está na cena do jantar com a família de Todd e contando uma anedota boba da faculdade, mas então a fala se emenda com ele contando sobre os fornos e covas rasas cavadas para desovar os cadáveres. Esta montagem totalmente limpa e linear é uma coisa que me agrada muito numa produção cinematográfica.
Enquanto que no conto, bom, quem lê Stephen King sabe o quão detalhista e prolixo ele pode ser, então, temos uma série de informações extras, algumas das quais infelizmente foram cortadas do filme, mas, a essência base do conto está lá, só que de forma mais enxuta.
Se no conto Todd é atormentado “apenas” com os pesadelos quando dorme, no filme, ele tem visões perturbadoras das vítimas do holocausto em locais como os chuveiros do ginásio por exemplo. E aqui está um ponto no qual o filme se apressou mais que o conto.
No livro o impacto psicológico demora a chegar ao garoto, que passa mais de um ano ouvindo as histórias do velho, sob o pretexto de que vai visitá-lo para ler alguns livros para o homem, enquanto que no filme os danos no emocional do jovem são bem mais instantâneos, mas mais uma vez, precisamos nos lembrar de que é um longa metragem e que foi preciso trabalhar dentro de um prazo de duração bem mais apertado do que o de um livro.
Na cena em que Todd trás para o velho uma réplica do uniforme nazista, no conto não existe muito mistério, o King nos informa logo que o homem abre o pacote, do que tem dentro da caixa, no entanto, temos tempo de ver como o psicológico do velho está ficando perturbado, pensando em quão longe aquela brincadeira de gato e rato, ele sendo o rato, está indo longe demais. Já no filme, sofremos de curiosidade por alguns minutos até que Dussander aparece trajando o uniforme completo.
Outra cena que foi reproduzida com fidelidade do conto é a em que Todd manda Dussander marchar, conforme o velho vai relembrando do prazer que era marchar, e fazer a saudação nazista, maior se torna o pavor estampado na cara do garoto e isso fica bastante nítido na cena do filme, exatamente como foi descrita no conto.
Mas, relembrando o fato de que no conto Todd tem apenas 13 anos e por isso ainda não tem interesse em namorar, torna tudo ainda mais perturbador, pois um menino tão jovem obcecado por um assunto mórbido como este, causa um impacto ainda mais forte nos leitores. No filme, como eu disse, aumentaram a idade do personagem e lhe deram um pseudo-interesse romântico, o que em minha opinião é algo totalmente desnecessário. Além da inserção de um “melhor amigo”, talvez em uma tentativa de humanizar o personagem, já que no livro Todd não mantém amizades dentro ou fora do colégio.
Essa tentativa de fazer o espectador simpatizar com o personagem, foi um pequeno tiro no pé, afinal no conto não temos uma opinião pré-formada pelo garoto, o que nos ajuda a começar a odiá-lo a partir de certo ponto da narrativa sem sentir qualquer remorso, mas apenas repulsa pelo psicopata para o qual ele evolui.
Na cena em que Dussander se passa por avô de Todd, para livrá-lo de repetir o ano, no conto, os dois entram em acordo com o plano de enganar o conselheiro e Todd dá todas as informações base sobre sua família para o velho, enquanto que no filme, o homem decide fazer isso por conta própria, surpreendendo o garoto (e aqui vemos mais uma tentativa de tentar tirar a culpa de cima do jovem, ao contrário do que é apresentado no conto, em que Todd se apresenta cada vez mais maquiavélico e calculista).
Mas é a partir desta cena chave que o jogo vira e Dussander se torna o chantagista e Todd o chantageado. Agora ambos têm um segredo bombástico um do outro para esconder. Também vale lembrar que tanto no conto quanto no filme há diversas cenas de crueldade com animais, no texto sendo descritas de forma minuciosa o suficiente para fazer qualquer um passar mal e no filme, sendo um pouco atenuadas, mas ainda assim igualmente chocantes.
E há mais um detalhe que não foi incorporado no filme, logo após a conversa com o orientador de alunos, Todd começa a assassinar moradores de rua, ao mesmo tempo em que Dussander também faz o mesmo em sua casa. Mas Todd é sedento e desesperado e mata em um mês, mais do que o velho mataria em um ano. Isso não foi incorporado no filme, em mais uma tentativa de livrar a cara do personagem, de desassociá-lo da imagem do psicopata frio e calculista que o personagem do livro começa a se tornar.
Também faltou aquele extremamente perturbador sonho erótico, que junto da cena do gato e dos moradores de rua, foi uma que me causou um bocado de incomodo. A impressão que eu tive é que tentaram suavizar o conto para que ele pudesse ser adaptado em filme, afinal, só de falar de nazismo já é um assunto bastante pesado, mas, essa exclusão de todos estes detalhes perturbadores meio que tirou a fidelidade da adaptação, já que são pontos importantes para o desenvolvimento de como nós, espectadores, vemos os personagens.
Enfim, tanto o conto quanto o filme são materiais bastante indigestos de se consumir, que causam mal estar em qualquer um remotamente humano, mas a meu ver o filme não conseguiu se equiparar ao conto, já que omitiu diversos pontos chaves que apresentariam a evolução psicopata de Todd e tentou isentá-lo da culpa.
Mas, mesmo assim, aqui vai a minha sugestão. Se você quer a experiência completa, todos os detalhes sórdidos e pensamentos repletos de pavor, leia o conto, agora, se o que você procura é conhecer a história publicada em “quatro estações” de uma forma mais compacta, picotada, condescendente com o personagem Todd e menos explicitamente violenta, veja o filme, mas repito, ambos são conteúdos de difícil digestão mental.
Curiosidades:
Em inglês tanto o conto quanto o filme tem o mesmo nome “Apt pupil” ou “Pupilo apto” no sentido de que Todd está sendo doutrinado por Dussander sobre a tortura e o horror da segunda guerra mundial. Mas, aqui no Brasil, como você pode notar pelo título desta review, ambos os materiais receberam nomes diferentes.
Dussander é interpretado por Ian Mckellen (Magneto, Gandalf) e está extremamente convincente no papel de um oficial nazista inicialmente chantageado, mas que aos poucos começa a retomar o gosto pela matança. Na verdade, foi o personagem mais complexo que eu já o vi interpretar, com nuances de humor e comportamento que evoluem com o desenrolar do filme.
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