Mulholland Drive
Eu tenho minhas implicâncias com os filmes do David Lynch, não vou mentir, o excesso de conteúdo fantástico que ele coloca nas produções às vezes extrapola aquele limite que o cérebro humano consegue entender sem passar horas analisando. Digo isso com base na ultima temporada de Twin Peaks, que após quase 33 anos que a temporada dois foi lançada, essa terceira que saiu em 2017 me deixou é com mais duvidas do que respostas. Mas a review de hoje não é sobre Twin Peaks, mas é de um filme do Lynch.
Á pedido de alguns amigos, que serão citados no fim da review, eu resolvi assistir “Mullholland Drive” ou “Cidade dos sonhos” como ficou conhecido aqui no Brasil. Segundo vi por ai, é considerado o filme mais ambicioso e complexo de Lynch.
O filme já começa com uma característica que se tornou marca registrada do Lynch, sobreposição de imagens com recortes vazados. Na cena um grupo de jovens caracterizados como pessoas dos anos 50 dançam o rock de salão. A montagem é extremamente mal feita, como algo produzido talvez nos anos 70, quando os efeitos especiais ainda estavam na fase larval.
Então a imagem de uma jovem loira acompanhada por um casal de meia idade surge no meio dos dançarinos e a tela escurece. Em seguida temos uma filmagem breve com a câmera em primeira pessoa, onde vemos um travesseiro vermelho e em seguida, a placa de rua informando que ali é a “Mulholland drive”. E só então, quase aos 3 minutos de filme é que a história realmente começa.
Durante a apresentação dos créditos iniciais, seguimos uma limusine que dirige a noite por uma estrada. O carro para e a passageira no banco de trás diz que o motorista não devia estacionar ali, mas então ele se vira apontando um revolver para ela e diz para que saia do carro. Enquanto isso há alguns metros antes na mesma estrada dois carros cheios de jovens fazem um racha. Um dos carros se choca com a limusine causando um grave acidente. A moça da limusine sobrevive, sai do carro e começa a andar a esmo.
A forma como ela se esconde e se esquiva de ser vista pelas pessoas na rua, dá a entender que a moça tem sérios motivos para não ser reconhecida, ao mesmo tempo em que a policia chega ao local do acidente e durante a perícia, encontra um brinco de pérola, deduzindo que havia uma terceira pessoa dentro da limusine. A moça consegue entrar em um apartamento cuja moradora está saindo em viajem.
A cena então muda para um rapaz que diz ter tido um sonho premonitório com um homem cujo rosto está totalmente deformado e que o encontrou atrás do restaurante onde ele e outro homem estão. Ao irem até o tal local, o rapaz vê o tal homem que apareceu em seu sonho, mas fica claro que o outro que o acompanhou até lá não viu nada. O momento em que o tal homem deformado aparece causa um susto instantâneo, já que não é precedido pro nenhum jump scare.
Acontece então uma série de telefonemas, dando a entender que a tal moça está sendo procurada. O filme corta para a jovem loira que apareceu no começo do filmem, seu nome é Betty e logo fica claro que a moça é uma aspirante a atriz, tentando a sorte em Los Angeles. Ela ficará no apartamento em que a outra moça está escondida e durante um breve dialogo entre elas, fica claro que a morena está com amnésia temporária por conta do acidente. Ela vê um pôster do filme “Gilda” estrelado por Rita Hayworth e então se apresenta com o nome de Rita, para Betty, que acha que a outra é uma conhecida da sua tia, dona do apartamento.
E aos poucos somos apresentados a outros pequenos núcleos narrativos, que servem para desenvolver o enredo, mergulhando-nos cada vez mais no mistério, já que nada é explicitamente explicado.
A coisa toda fica ainda mais complicada quando Rita confessa a Betty que está com amnésia e ao abrir a bolsa que trouxe consigo, descobrir uma grande quantia de dólares e uma estranha chave plástica, coisas que não ajudam em nada a moça a recobrar sua memória.
E em paralelo a situação das duas moças, nós acompanhamos o ridiculamente impulsivo diretor de cinema Adam Kesher, que tem uma forte inclinação para “surtos de raiva”, vamos chamar assim, e ao dizer não para a escolha de uma moça para ser a protagonista do seu filme, escolha esta feita por dois homens que aparentam ser mafiosos, acaba cavando a própria cova social.
Pode-se dizer que por trás de todo esse suspense e intrigas, o filme faz uma critica a indústria cinematográfica e a forma como o elenco e especialmente as protagonistas são escolhidas e o quanto de assédio e abuso acontece antes das filmagens começarem de vez.
Infelizmente, tem aquele romancezinho chiclete e chato, que praticamente todo filme de quase todos os diretores do mundo tem, sério, gostaria muito de ver um filme um dia em que a protagonista não se apaixonasse instantaneamente pelo carinha sem noção. Isso me frustra tanto, porque parece que serve pra dizer, ei, não importa o quão ruim a vida da personagem esteja no roteiro, esquece tudo isso e olha pra esse romance forjado aqui.
E no momento, quase no meio do filme em que Rita encontra a caixa que a tal chave que ela tinha na bolsa junto do dinheiro, abre, somos apresentados a uma espécie de universo paralelo onde a situação das duas personagens, seus nomes e relacionamentos entre si são o oposto do até então apresentado no filme.
O universo Lynch é repleto de personagens masculinos com as mais absurdas esquisitices comportamentais, desde hábitos por determinados alimentos até agressividade impulsiva e irrestrita, o que nos faz traçar um padrão de quem são os “caras maus” dentro dos filmes. E como eu já disse na minha review de Veludo Azul, nenhum homem dentro do universo Lynch é bom, eu disse, nenhum. Todos eles em maior ou menor grau estão corrompidos, são sujos e vis.
Também se pode dizer que o filme trabalha com aquele estereótipo batido a exaustão da morena fatal e da loira inocente. Mesmo com amnésia, Rita passa uma imagem de sedução e perigo enquanto que Betty é a ingenuidade deslumbrada da garota do interior em pessoa.
O estilo de roteiro do Lynch é tão metódico que podemos até criar um bingo imaginário com ele. “uma pessoa teve um sonho premonitório”, “aconteceu um assassinato/morte impossível de explicar”, “existe uma figura feminina sensual e psicologicamente perturbada”, “acontecem situações sobrenaturais/inexplicáveis/complexas”, lembrou de algum filme dele? Eu lembrei de vários. Agora me entenda bem, isso não é uma coisa ruim, na verdade, todo diretor que se preze tem sua assinatura, aqueles detalhes repetitivos que podemos encontrar em todas as suas obras, mas, esse perfil, esse padrão, após uma boa quantidade de filmes fica cansativo e repetitivo. É como se ficássemos esperando algum acontecimento previsível, pois sabemos que o monstro vai pular em cima da mocinha assim que ela passar por aquela determinada porta.
E foi o que eu senti em Mulholland Drive. Essa repetição de detalhes-chaves de roteiro, os quais eu já cansei de ver em outras produções do diretor. Talvez este seja um dos pontos negativos do filme, a meu ver, mas para pessoas que diferente de mim, não assistiram outros trabalhos de David Lynch, este filme pode ser um rico entretenimento.
Enfim, apesar de já ter conhecimento prévio do desfile de bizarrices que costumam ser as produções de David Lynch, não consegui chegar a uma interpretação concreta sobre o final deste filme. Eu tive com Mulholland Drive a mesma sensação de frustração e impotência que senti ao ver o episódio final da ultima temporada de Twin Peaks.
As ações foram óbvias, mas ainda assim, o significado das cenas finais foram totalmente incompreensíveis e em certo momento pude assimilar a tal caixa azul apresentada no filme com a configuração do lamento de Hellraiser, ou seja, um objeto que poderá te dar o prazer desejado, mas cobrará um pagamento a altura. Foi a interpretação mais coerente que eu consegui fazer.
Este não é um filme para quem gosta de narrativa linear com começo, meio e fim e o mocinho matando o vilão e ficando com a donzela. Mas ei, é um filme do Lynch, o que significa que é uma viagem de ácido, com você estando sóbrio, não espere nada mais absurdo do que isso.
Esta review foi um pedido de Ares Saturno e Roberta Benzaquen.
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