Corra!
Alguns filmes a gente precisa rever pra tirar a duvida se não gostou ou se só não teve tempo de apreciar, eu já falei sobre isso antes na review de The Void, de como ao rever o filme as coisas pareceram se encaixar e detalhes que passaram despercebidos da primeira vez; saltaram aos olhos quando revi o filme uma segunda vez.
É o que aconteceu com “Corra!”. Na primeira vez que eu vi, no começo de 2018, estava tentando consumir o maior número de indicados ao Oscar possíveis no menor prazo de tempo possível e por isso, muitas informações cruciais do filme passaram despercebidas por mim. Mas eis que esta semana eu revi o filme com calma, anotando todas as possíveis referencias importantes e finalmente, trago esta review para vocês.
AVISO: Haverá spoilers nesta review.
Gostaria de adiantar que esta review será diferente das que eu costumo fazer, já que nesta aqui eu vou focar mais nos detalhes do que no enredo, mas vou situar vocês sobre o roteiro filme pela sinopse. Rapaz negro é convidado para ir até um residencial conhecer os pais da namorada (que é branca), tudo parece muito bem, com exceção de alguns comportamentos estranhos das poucas outras pessoas negras do local, até que enfim apresenta-se o verdadeiro motivo de ele ter sido levado até lá.
Logo no começo do filme vemos um rapaz negro falando no celular com a namorada (a qual pode muito bem ser Rose, namorada do protagonista, Chris), enquanto ao fundo um carro passa tocando a música “Run rabbit, run”, o que me fez pensar que a musica é uma metáfora do que o rapaz negro deve fazer (run = correr), para que os brancos do residencial (no papel de caçadores) possam persegui-lo.
O mesmo rapaz dá uma dica do tom que será abordado no filme quando diz para a namorada no telefone “eu sei como eles (os brancos) tratam a gente (os negros) por aqui”. E em seguida, ele é nocauteado e sequestrado. Só vamos vê-lo novamente lá pelo meio do filme, já sob o efeito da hipnose.
Também se pode notar uma segregação inclusive na trilha sonora, enquanto estamos sendo apresentados ao apartamento do Chris, toca-se musica interpretada por cantores negros, ao passo que, ao chegar na casa dos pais de Rose, a música se torna algo inexistente.
Analisando o filme friamente, notei que comportamentos considerados corriqueiros eram na verdade, uma analise prévia para saber da saúde física e mental de Chris. As cenas começam com Rose jogando o maço de cigarros dele pela janela na estrada, com a desculpa de se preocupar com a sua saúde, quando na verdade ela está querendo preservar o corpo que será vendido futuramente. Isso se estende durante uma conversa com os pais dela, quando eles perguntam ao rapaz sobre os pais dele. Destaque para a pergunta de como a mãe de Chris morreu, uma tentativa de descobrir se ele tem algum histórico de doenças genéticas na família, além da pergunta sobre maus hábitos como cigarro e bebida.
Existem diversas menções e referencias ao racismo velado dentro do filme, começando com o policial que para Rose e Chris na estrada, porque ela atropelou um cervo que cruzou a pista e pede para que ele e somente ele, lhe mostre o documento de identidade. Referencia direta a como a polícia sempre culpa e desconfia de pessoas negras, apresentada de uma forma mais sutil do que os assassinatos e provas plantadas nos cadáveres.
Em seguida temos a coisa do cervo que o pai de Rose diz e que é uma metáfora direta a como muitas pessoas racistas vêem as pessoas negras. Ele fala “quando vejo um cervo (um negro) morto na beira da estrada eu penso, já é um começo”. Inclusive a expressão facial do Chris ao ouvir a frase é de puro choque e horror.
Há também a menção ao avô de Rose, que perdeu as classificatórias da corrida olímpica para um homem negro, esse fator talvez tenha sido responsável para que o homem criasse sua doentia seita.
Além do fato de que o filme foi lançado em 2017, Trump já estava no poder então e daí a alfinetada de “votar no Obama pela terceira vez” serviu não apenas como um comportamento para ocultar o racismo do pai da Rose, mas também, como uma cutucada do diretor no atual governo opressor e abertamente racista.
Quando os pais de Rose perguntam a Chris sobre seus pais e parentes, é apenas mais um detalhe para analisarem os possíveis riscos que poderiam atrapalhá-los de vendê-lo. Afinal, se ele tivesse família, alguém iria sentir a falta do rapaz. Destaque para a pergunta de como a mãe de Chris morreu, uma tentativa de descobrir se ele tem algum histórico de doenças congênitas na família, isso complementado pela pergunta do cigarro, que serve de gancho para a suposta hipnose curativa.
A hipnose, que vem disfarçada sob a promessa de curar Chris do vício do cigarro é bastante interessante, já que a mulher não anuncia que o está hipnotizando, até que seja tarde demais.
Também é interessante notar uma inversão de papeis, se pararmos para analisar que Chris fez o papel da “mocinha burra do filme de terror” que só se dá conta do perigo em que está quando já é tarde demais. E esse detalhe, de colocar um personagem masculino como possível vítima, é um verdadeiro quebrador de estereótipos de filmes de terror.
Enquanto Geraldina serve o chá, ela escuta falarem sobre a tal reunião e então, algo dentro dela tem um momento de consciência, o que faz com que ela derrube o chá. Ao mesmo tempo Rose comenta que, a reunião nunca é sempre no mesmo dia (dando a entender que elas só são feitas quando se tem “mercadoria” bastante para venda).
Entra em cena então o irmão de Rose, nada sutil fala que Chris tem um belo “porte” (como se ele fosse um animal e não uma pessoa) e comenta sobre seu mapa genético, dando a entender que certas características do rapaz poderiam ser mudadas.
Durante a festa, Rose diz ao namorado que ele “só precisa sorrir o tempo todo” e isso é um padrão notado entre todas as outras pessoas negras do local. eles sorriem forçadamente o tempo todo, como se estivessem em uma espécie de modo automático macabro. Mesmo quando estão chorando, seus lábios continuam esticados em um sorriso mecânico. Eles estão em uma prisão mental, sem muros, mas ainda assim, impossível de escapar.
As conversas com os convidados são bastante desconfortáveis, como se, ao verem Chris, eles estivessem escolhendo um objeto a venda. Um deles diz que adora Tiger Woods (golfista profissional e que é negro), mas não sem antes mencionar o problema no próprio quadril que o impossibilita de jogar golfe. Outra mulher cujo marido está na cadeira de rodas dá a entender que quer Chris para fins sexuais e um terceiro diz que “negro está na moda” como se uma etnia fosse uma roupa nova.
O comportamento dos brancos na festa me fez lembrar dos satanistas em “O bebê de Rosemary”, cercando a jovem indefesa, fingindo serem simpáticos e solícitos mas na verdade, isso tudo é uma fachada para ficarem de olho na sua presa. Tal comportamento desperta o nosso alarme de perigo enquanto vemos o filme.
Outro sinal de alerta é quando Chris vai dar um bump-fist (cumprimento negro) em outro rapaz, também negro, e o mesmo envolve seu punho, como em um aperto de mãos, como se o outro não soubesse como corresponder ao gesto ou pensar por si próprio.
Tem também esta cena em que Chris entra na casa e todos estão conversando, mas no momento que ele sobe para o quarto, todos se calam e começam a olhar para o andar de cima. A interpretação desta cena fica aberta para o publico, mas, para mim, o silencio é um misto de surpresa e horror em verem um rapaz negro que ainda tem controle do próprio cérebro e vontades. Ele ainda não é um boneco sem vida.
Sem saber, Rod, pelo telefone, dá o alerta dos efeitos colaterais da hipnose para Chris, mas o rapaz acha que o amigo está exagerando e mais uma vez ignora o sinal gritante de alerta.
Em uma cena em que Geraldina vem pedir desculpas (forçada pelos patrões) a Chris, acontece outra cena no mínimo alarmante de choque cultural quando o rapaz usa expressões comuns de pessoas afro-americanas para se referir a alguém que dedura outra pessoa, mas Geraldina só “entende” quando ele aplica uma expressão similar, usada por brancos. Dedo-duro = linguarudo.
A cena em que lágrimas escorrem enquanto Geraldina sorri e diz frases desconexas é mais um sinal vermelho para que Chris fuja, mas, mais uma vez o rapaz ignora o alerta.
O flash da câmera serve para quebrar a hipnose (esse artifício já foi usado antes em outros filmes de terror e suspense) e a primeira coisa que o rapaz, Logan (aquele que aparece no começo do filme sendo raptado) diz a Chris é “sai fora” (get out) que é uma tentativa de alertá-lo, mas a mensagem sai confusa e apesar de Chris saber que o flas não causou uma convulsão, como lhe diz, a família de Rose e a própria garota, teimam em confirmar o ataque convulsivo.
O filme leva 58 minutos para apresentar para o que veio, com a cena do leilão silencioso, em minha opinião, uma das cenas mais perturbadoras do filme. Eu acredito que um pouco do conteúdo anterior a esta cena poderia ter sido enxugado para que o final não tivesse sido tão corrido.
Quando Chris em fim descobre que está namorando isca, responsável por atrair todas as pessoas negras que estão ali, incluindo Geraldina, Chris entra em desespero, mas, é tarde demais. A família de Rose não é nada diferente de um Serial Killer, mas ao invés de matá-lo fisicamente, o fazem mental e socialmente, quebrando-o.
Quando Rose aparece olhando o notebook, escolhendo sua nova vítima, podemos ver as suas costas um painel montado com as fotos de todas as pessoas que ela atraiu previamente para lá, como uma espécie de troféu, um dos comportamentos registrados de seriais killers, que gostam de manter souvenires de suas vítimas.
O que torna tudo ainda mais assustador é o fato de que nenhuma única pessoa branca no condomínio quer ajudar Chris. Aqui não há a figura do “branco salvador”, o que torna tudo ainda mais realista e apavorante. Tal comportamento pode ser interpretado como as pessoas que vêem crimes de racismo na rua mas preferem virar o rosto e ignorar, pois é mais cômodo do que tentar ajudar.
E finalmente compreendemos o significado metafórico da cabeça de cervo empalhada na sala de estar da família, é uma expressão simbólica do que o pai de Rose gostaria de fazer com as pessoas negras. Lembre-se do que ele disse no começo do filme sobre cervos, como ele os odeia.
O comportamento racista e disfarçado é apresentado como uma seita, um culto pagão doentio no qual pessoas negras são o sacrifício, afinal, grande parte da sociedade idolatra o racismo, mesmo que disfarçadamente, como um culto, algo a ser enaltecido e até incentivado.
Também há menções a fazenda de colheita de órgãos, coisa real e mais comum do que se imagina. Especialmente em lugares como China e Índia. Além de o filme apresentar um gritante complexo de Deus, onde as personagens brancas dão a entender que tem direito sobre a vida das personagens negras.
Chris é drogado e amarrado em uma cadeira, onde é obrigado a assistir um vídeo sobre a tal comunidade e em seguida, ver quem foi seu “comprador”. O velho cego que coleciona arte, ele quer ser transferido para o corpo de Chris, para poder ter a vitalidade e a visão de volta. Em certo momento Chris ataca o irmão de Rose (que está fazendo papel de enfermeiro durante o preparo para o “procedimento” de extração) com uma bola de croquet e tal ação tem uma mensagem metafórica, já que croquet é um jogo praticado predominantemente por pessoas brancas, então o irmão de Rose foi “derrubado por algo que sua raça gosta de fazer”.
A cena do massacre final durou de 10 a 13 minutos, em um filme com duração de 1h44 minutos, a abordagem dessa sequência foi, na minha opinião, mal aproveitada. Poderia ter sido mais longa e menos confusa. Mas, acredito que o foco do diretor era o terror psicológico/emocional.
A cena final que explica quem realmente está habitando o corpo dos dois empregados da família (são os cérebros dos avós de Rose) torna a narrativa ainda mais macabra e assustadora, pois não é de hoje que pessoas sonham em transplantar seus cérebros para corpos saudáveis e continuar vivendo eternamente.
Só ficou um buraco no filme, e é a pergunta de quando Chris colocou algodão nos ouvidos? A gente não vê ele fazendo isso e nem mesmo pegando algodão para colocar no bolso da calça ou coisa parecida. Então, esta cena, que é a cena-chave para o desenrolar do roteiro ficou meio Deus vs. Maquina, pois não explicou como aconteceu, apenas, aconteceu.
Enfim, o filme é uma critica interessante ao racismo e especialmente a aqueles que dizem não serem racistas, os clássicos “eu até tenho um amigo negro” ou “meu namorado/a é negro/a”, o que em minha opinião é o pior tipo de racista, pois tenta se esconder atrás da máscara da imparcialidade.
Também vale citar que Jordan Peele era conhecido até então por atuar na área da comédia e este foi seu primeiro filme sério/de terror e seu primeiro trabalho como roteirista e diretor.
Minha conclusão é que, alguns filmes precisam realmente ser revistos para que se possa compreender o enredo de forma mais satisfatória. Pode-se dizer que “Corra!” é uma fábula de horror sobre o racismo velado, o descaso das autoridades para com vitimas negras e o tráfico de órgãos, além da sexualização e objetificação de pessoas negras. Tudo isso salpicado com o tempero do horror psicológico e algumas pitadas de gore.
“Cai fora!”








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