Laranja Mecânica – Livro Vs. Filme

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AVISOS:
1.      Esta review terá spoilers tanto do livro quanto do filme.
2.      Tanto o livro quanto o filme tem cenas de estupro e violência.
Eu li o livro há algumas semanas e foi uma leitura bastante complexa, em parte pelo dialeto Nadsat, que é um vocabulário único, criado por Anthony Burgess para que os personagens Alex e seus druguis (amigos) usassem. Confesso que foi a experiência mais deliciosa e desafiadora que eu já experimentei em todos esses meus anos de leitura. 

O livro é dividido em três partes que seriam mais ou menos antes, durante e após o tratamento Ludovico (do qual falarei melhor mais para frente). No antes, nós conhecemos Alex, um garoto de 15 anos, violento e sem qualquer escrúpulo que faz coisas horríveis com as pessoas, acompanhado de seus três companheiros, Pete, George e Tosko (que no filme passou a se chamar Dim), logo nas primeiras páginas eles atacam um homem que está saindo da biblioteca e lhe dão uma surra violenta. No filme a cena é protagonizada por um bêbado semi desmaiado, mas a brutalidade é a mesma.  
O livro é bastante profundo, pois vemos a evolução de Alex como ser humano e apesar de todos os atos horríveis que ele pratica, sentimos pena dele após ser submetido ao tratamento e o terceiro ato, que foi removido da versão cinematográfica nos faz questionar se esse tipo de tratamento de aversão, no fim, não é só uma coisa paliativa e que pode ser revertida se o individuo tiver muita força de vontade. (vou dar um pequeno spoiler da terceira parte do livro ao fim desta review).  
Sobre o filme de Kubrick, preciso ressaltar que a coreografia das cenas de luta é tão bem feita que chega quase a parecer um ballet. No filme também fica bem explicitado a diferença das gangues através dos trajes dos seus integrantes, enquanto os Druguis de Alex usam roupas brancas e chapéu coco, os de Billy Boy se vestem com peças rasgadas, sujas e que não se encaixam corretamente.
No filme foram mantidas algumas palavras do vocabulário Nadsat, mas boa parte das palavras foi substituída por sinônimos do idioma americano (e no caso das legendas, brasileiro) e com isso o filme perdeu boa parte do incomodo e estranheza que o livro causa ao leitor. E os cenários abusam das cores, formas e imagens de nudez feminina, o que destoa um pouco da apresentação feita no livro.
Em ambos os materiais Alex é narrador com uma quebra clássica da quarta parede, ao interagir constantemente com o expectador. Além de a história tanto do livro quanto do filme se passa em uma realidade distópica, regada por música clássica.


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A icônica cena do estupro ao som de “Sing in the rain” existe apenas no filme. A cena do estupro existe no livro, mas é descrita de uma forma bastante rápida, sem se focar nos detalhes sórdidos do ato, ao contrário da cena do filme que é bastante gráfica e esta talvez seja, juntamente do tratamento Ludovico, a cena mais perturbadora do filme, por conta de todo o terror psicológico que Alex e seus Drugues causam no casal aterrorizado e também porque podemos ver que Alex não tem qualquer pensamento que não seja de machucar, violar e matar seus semelhantes humanos. 
A decoração de todas as casas apresentadas no filme é bastante kitsch (ou seja, exagerada, muito colorida e de muito mau gosto) detalhe que não é explicitado no livro, mas que serviu pra dar uma impressão de realidade ridícula (no sentido de fora do comum) ao filme. O filme também abusa de elementos sexualmente gráficos em pinturas e esculturas, coisas que no livro, são representadas por peças de arte clássicas como bustos de gesso e pinturas renascentistas.
A trilha sonora do filme é praticamente composta apenas por grandes peças da música clássica, muitas das quais todos nós já ouvimos em algum momento da vida, mas que, aplicadas nas cenas do filme, ganham um novo e macabro significado.
Sobre a cena do assassinato que resulta na prisão de Alex. No livro a cena é sóbria e bastante fria, com descrição clara pelo personagem-narrador, enquanto que no filme ela tem um tom meio de comédia, o que tira um pouco da seriedade que Burgess quis passar em seu manuscrito. (essa foi uma das poucas cenas do filme que não me agradou, prefiro a representação do livro, para esta cena específica).
A partir daqui Alex vai para a prisão e pega 14 anos por assassinato, é quando ele escuta sobre o tratamento Ludovico pela primeira vez. Um tratamento que promete tirá-lo da prisão em poucos meses. Ele não sabe no que está se metendo, mas se oferece como voluntário mesmo assim.


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O tratamento Ludovico nada mais é do que uma terapia de aversão, (muito utilizada nos anos 50-60 para “curar” pessoas homossexuais) e é um misto de drogas injetáveis com projeção de cenas de extrema violência ao som de música clássica. O paciente usa um aparelho que não deixa piscar ou virar a cabeça, sendo obrigado a assistir as imagens torturantes. E é nisso que o Alex se mete. Nesse tratamento que promete torná-lo um “homem de bem”.
Só que ninguém avisa a Alex que o efeito colateral do tratamento o transformará em uma pessoa que não pode reagir a qualquer tipo de agressão contra si. Ou seja, proíbe que ele pratique qualquer ato violento ou imoral, mas também que ele se defenda de agressões e abusos, transformando-o em um saco de pancadas ambulante e privando-o do livre-arbítrio de qualquer decisão considerada “violenta”, já que, só de pensar em algo agressivo, ele é acometido por dores físicas horríveis, enjôo e outros efeitos colaterais igualmente incômodos.
Quando ele em fim sai do tratamento, após passar por um teste bastante humilhante para mostrar o quão inofensivo ele se tornou e finalmente chega em casa, descobre que seus pais alugaram seu quarto para um homem, que agora é inquilino deles. Sem casa, ele sai para perambular pela cidade, quando o bêbado que Alex e os amigos espancaram no começo do filme aparece, lhe pedindo alguns trocados. O homem o reconhece e passa a persegui-lo e então, junto de outros moradores de rua, começam a surrá-lo e como ele não pode revidar, por conta da forte dor física e enjoo, apenas recebe os ataques.
É quando aparece a polícia, e que surpresa, se não são seus ex-druguis, Georgie e Dim, que resolvem surrá-lo e torturá-lo mais um pouco. Por fim, ele acaba chegando na casa daquele casal, cuja esposa ele e os amigos violentaram. (aqui tem algumas diferenças entre o livro e o filme).
O homem o reconhece como o agressor de sua esposa, que cometeu suicídio após os abusos e resolve se vingar/utilizá-lo como bode expiatório contra a campanha pelo tratamento Ludovico feito pelo governo. Ele prende Alex num quarto e coloca musica clássica alta o suficiente para deixá-lo desesperado pelas sensações de dor e náusea que a mesma agora causa em seu corpo e em um ato desesperado, o rapaz se joga pela janela.


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E aqui está a parte interessante, na queda, toda a programação feita em sua mente com o soro especial é revertida e ele volta a ser o mesmo rapaz violento, agressivo e imoral de antes. Temendo que tal informação se espalhe, o governo vai até ele, que ainda está internado e lhe oferece um cargo de confiança com um alto salário.
A parte que não foi colocada no filme, mas está no livro é a seguinte. Vemos Alex novamente no bar de leite-com, acompanhado de três novos druguis, todos vestidos na moda Nadsat e planejando o que irão fazer naquela noite. Ou seja, ele voltou a ser como era antes do tratamento. Eu senti falta desta cena no filme, confesso, mas de resto preciso frisar que o filme é uma adaptação 90% fiel ao livro.
Outro detalhe do qual eu senti falta foi a explicação do titulo do filme/livro. “Laranja Mecânica”, no livro esta informação é apresentada como sendo o livro que o marido da moça violentada estava escrevendo, e fala sobre como as pessoas estão deixando de serem elas mesmas e se tornando robóticas, laranjas mecânicas. Inclusive no livro, Alex usa a expressão diversas vezes para se referir a si mesmo. Este foi um detalhe que se perdeu na adaptação e que por isso, deixou o titulo solto para interpretação livre do telespectador.


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Não é um filme fácil de assistir, mas, diferente dos motivos que fazem o livro algo difícil de se ler, o vocabulário Nadsat e a descrição crua e explícita de Burgess, o filme de Stanley Kubrick se torna uma tarefa difícil pelo fato de podermos ter uma expressão visual dos horrores descritos no livro.
Ler o livro e alguns dias depois ver o filme, foi uma experiência única e deliciosa, pois normalmente quando vamos ver uma adaptação de um material escrito, o que costuma acontecer é que boa parte dele é descartado pelo diretor e roteiristas, o que não foi o caso desta adaptação.
Recomendo muito a leitura do livro, de preferência sem conferir o vocabulário Nadsat, pois lê-lo e tentar compreender as palavras pela interpretação do contexto geral é um verdadeiro desafio e então, ver o filme, claro, tendo em mente de que é um filme antigo, feito em cima de um livro, ambos considerados Cult. Então, paciência é indispensável. Mas é um bom material e nos faz questionar sobre o livre-arbítrio e para mostrar que “tratamentos de aversão” não são totalmente eficazes.
                                       “Eu estava mesmo curado”

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