O Babadook – uma metáfora sobre a depressão


A primeira vez que eu assisti “O Babadook” foi em 2016 e confesso que não consegui aproveitar o filme como deveria, em grande parte por causa do personagem Samuel, filho da personagem Amélia. Apesar de eu saber que o comportamento escandaloso do garoto foi colocado no filme para causar incomodo e desconforto, ele só me causou irritação e desconcentração. Dois anos depois resolvi rever o filme adotando uma técnica diferente. Toda vez que o garoto abria a boca eu tirava o áudio do filme. Resultado? Consegui absorver muito melhor o conteúdo.

 “O Babadook” é um filme de terror existencial de 2014, escrito e dirigido por Jennifer Kent e que fala de uma criatura bizarra que aparece quando se lê o livro que o “invoca”, mas apesar do Sr. Babadook dar nome ao filme, o verdadeiro vilão da história é a depressão e você pode notá-la nitidamente se analisar com cuidado a personagem da mãe, Amélia.
Quero deixar claro aqui que vou ignorar o fator sobrenatural/místico do filme, a existência da tal criatura, e focar-me apenas nas metáforas sobre a depressão, o que poderia tornar o filme um drama pesado sobre uma mãe depressiva tentando criar um filho hiperativo e com tendências agressivas e possessivas.
Ela é uma jovem mulher cujo marido morreu em um acidente de carro, no exato momento em que ela dirigia até o hospital para dar a luz ao filho. Ou seja, o garoto faz aniversário no dia da morte do pai, e por isso, ela evita de comemorar a data.
O menino é extremamente dependente dela, chegando a ser um incomodo gritante. Ele dorme na mesma cama que a mãe e a abraça e segura de uma forma desesperada e vemos pelo comportamento furtivo dela, o quanto aquele tipo de invasão é desconfortável, a medida que Amélia se afasta até quase a beirada do colchão em busca de espaço.
Além de hiperativo e exigir atenção da mãe o tempo todo, atrapalha-a em seu trabalho e a inibi de poder apreciar os prazeres adultos básicos. Há uma cena ainda no começo do filme em que Amélia está assistindo algo na tevê e passa por uma chamada de um vídeo erótico, isso desperta nela o desejo de se masturbar, mas, ela mal tem tempo de começar alguma coisa e o garoto entra no quarto, pegando-a de surpresa.
Pode-se dizer que aqui está uma critica disfarçada sobre a falta de privacidade da mulher quando ela se torna mãe. Ela não é mais apenas uma mulher, dona de suas vontades. Muito da sua liberdade foi cruelmente castrada para que o filho seja bem criado. Também é reforçado à exaustão a falta que um relacionamento romântico faz na vida dela. Afinal, Amélia é jovem e deveria poder ter uma vida normal e agradável.
É fácil sentir pena de Amélia, que ficou com o fardo de cuidar de uma criança hiperativa, ansiosa e com uma imaginação nocivamente fértil, sozinha, além de ter de trabalhar para sustentar a casa. E as interações que ela tem com alguns poucos membros da família também demonstram que eles acreditam que “já é hora de seguir em frente”, esquecendo-se que luto e depressão são duas coisas que não pode simplesmente desligar com o click de um botão.
Em certo momento no filme um dos colegas de trabalho de Amélia diz a ela: “Você não precisa estar bem, sabe?” e nesta frase eu senti todo o apoio que uma pessoa com depressão deveria receber. Porque entenda, pessoas que tem depressão são constantemente cobradas e exigidas que estejam bem, que se sintam felizes, que sorriam, pois “tudo está bem na vizinhança”. Ou pelo menos é isso que a sociedade e pessoas que não tem de lidar com esta doença esperam que pessoas com depressão devem reagir.
Dizer para uma pessoa que está lidando com um quadro depressivo, “Você não precisa estar bem” é como tirar um peso dos ombros dela, pois você está demonstrando que compreende a situação e não espera uma reação mecânica positiva dela.
Outro detalhe é que, Amélia esconde que está com problemas emocionais, exatamente por medo de ser julgada e em ultimo caso, de que tomem Samuel dela. Mas, ela não se dá conta de que o menino é parte do problema.
Eu já disse na minha review de Melancolia, que eu tenho lutado já faz alguns anos com a doença, é difícil e exaustivo e durante “O Babadook” me identifiquei em vários pontos com a Amélia. Ela está constantemente cansada, frustrada e irritada. Funciona no piloto automático e não tem qualquer lazer, válvula de escape ou algo que lhe dê algum tipo de alivio.
Como eu disse antes, o filme também trabalha com o tempo de luto. Para algumas pessoas o luto é um estágio passageiro, dura no máximo um, talvez dois anos, dependendo da conexão que tenha com a pessoa falecida. Mas no caso de Amélia, a morte do marido deixou uma ferida que nunca cicatriza e por isso ela não se desfaz das memórias e objetos que ele deixou. Deduzimos pelo conteúdo encontrado no porão que o marido era músico, violinista.
E o quanto de zelo e cuidado que ela tem pela memória do homem que amou, o filho não tem, pelo pai que jamais conheceu. Ele trata todos os objetos tão preciosos para a mãe, como brinquedos descartáveis. E aqui vemos como a insensibilidade de não se ensinar sobre a memória pode ser um agravante terrível.
O garoto se torna agressivo depois que um dos colegas de trabalho de Amélia aparece para visitá-la, em um comportamento claramente ciumento. Um homem estranho tentando se aproximar da sua mãe. Mas, para demonstrar tais ciúmes, o menino faz coisas ruins, como colocar cacos de vidro na sopa dela, desarrumar sua cama e riscar uma foto dela com o pai falecido e colocar a culpa no tal Babadook.
Outro fator muito comum em pessoas com depressão profunda é a falta de percepção do tempo de sono. No filme, a personagem mal deita para dormir e já é de manhã e o garoto a está chamando, pois ela está atrasada para trabalhar.
E no decorrer do filme descobrimos que Amélia abandou sua carreira, ela era escritora de livros infantis, quando ficou grávida. Ao perder o marido, também perdeu o interesse pela carreira e se tornou enfermeira e uma casa de repouso. É fácil ver o quão infeliz ela é no novo emprego.
E mais uma vez vemos o descaso com que pessoas que não lidam com a doença, tratam pessoas que tem depressão. A forma como a irmã fala com Amélia é no mínimo revoltante. A mulher é egocêntrica e não esconde da filha pequena as conversas que tem com o marido de que “ir a casa da irmã é depressivo”. A menina escuta e repete para o primo, Samuel, que não aceita muito bem a informação e a empurra da casa na árvore, fazendo a menina quebrar o nariz em três lugares.
Mais uma cena que vale a pena citar é quando Amélia, desesperada após o menino ter tido uma crise epiléptica que segundo o médico foi disparada pela ansiedade, consegue uma receita de comprimidos para dormir. O médico usa o discurso pronto de “muitas mães não gostam de dar remédios aos filhos pequenos”, mas o fato é que ele não tem ideia do que Amélia está passando e ao dar um ao menino, vemos a metáfora visual de uma noite bem dormida, quando o corpo dela cai flutuando lentamente até o colchão.
Inclusive quando o livro retorna (pois Amélia o pica em pedacinhos depois do menino ter pesadelos com a história, mas alguém ou algo o re-constrói e entrega na porta da casa dela) nas cenas do livro pop-up “Sr. Babadook”, na página em que ele aparece gritando “me deixe entrar!” é uma metáfora clara a depressão e a força de vontade de Amélia ao tentar repeli-la e não permitir que ganhe espaço dentro de sua mente.
Existe até um trecho que exemplifica bem essa metáfora, uma frase no livro que diz “Você começa a mudar quando eu entro”, já que, quando uma pessoa é tomada pela depressão, querendo ou não ela começa a mudar e claro, sempre para pior.
As páginas seguintes são pensamentos de assassinato e suicídio, dois tipos de ideias nocivas que povoam a mente de pessoas com depressão em algum momento das crises.
A cena em que Amélia vai a polícia abrir uma queixa por ameaça, pode ser interpretada como quando uma pessoa com depressão procura um psicólogo ruim que a trata com descaso e a entope de medicamentos sem sequer parar para analisar o emocional dela. O pouco caso e a falta de tato do policial podem ser interpretados como um médico ruim, no sentido de mal profissional. O guarda olha para Amélia como se ela estivesse louca e precisasse apertar os parafusos. Já me olharam assim algumas vezes, e eu te digo, é muito desconfortável.
E então vemos Amélia ligar para o trabalho e dizer que está doente e que não se importa se derem os turnos de trabalho dela para outra pessoa. Ela esta entrando em um nível agudo de depressão, aquele ponto em que sair da cama, comer e tomar banho se tornam esforços sobre-humanos e junto vem a irritabilidade que atinge níveis fora do comum.
Ela vai se isolando das pessoas com quem tem contato diário e começa a ter oscilações de humor, agredindo verbalmente o filho, pois chegou a um ponto nervoso no qual não consegue mais fingir que esta tudo bem.
Finalizando, há duas cenas com metáforas importantes no final do filme. A que Amélia enfrenta o Babadook (a depressão) diminuindo seu poder e subjugando-o e a sequência final do porão pode ser interpretada como se ela conseguiu finalmente tratar e conviver com sua depressão, alimentando-a com uma dieta restrita o suficiente para que não fique forte o bastante para tomar controle de sua vida novamente.
E vale citar que, apesar de todas estas minhas observações sobre depressão, assim como em Melancholia, em nenhum momento do filme a palavra “depressão” é dita, como se fosse algum tabu sujo e perverso cuja simples menção pudesse atrair o mal. No lugar dela, eles usam “Babadook”.
Babadook, dook, DOOK!

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