Melancolia
Filmes que trabalham a depressão não são tão difíceis de encontrar, mas poucos conseguem meter o dedo na ferida e ainda girar dentro dela, amplificando a dor e o mal estar. E ninguém melhor que uma pessoa com depressão profunda para produzir um filme sobre o assunto de forma sincera e realística. Este é o caso de Melancolia.
Cheguei até este filme por indicação de um canal do youtube que eu acompanho e lá a pessoa fez uma sinopse rápida sobre o longa-metragem, que estava em uma lista com outros filmes sobre depressão. Alguns pontos específicos me fizeram ter interesse pelo filme, entre eles o diretor, Lars Von Trier, por quem eu tenho sentimentos de amor e ódio e pela atriz protagonista, Kristen Dust, a qual eu acompanho desde que aos oito anos fez Claudia em Entrevista com o vampiro.
Antes de tudo deixe me adiantar que este filme é considerado “de arte” o que significa longas tomadas fixas no rosto impassível das personagens, cenas extensas de paisagens e locais desertos, silêncio e falta de diálogos em várias cenas, trilha sonora aguda e perturbadora e enredo obscuro. Ou seja, não é um filme para quem gosta de coisas dinâmicas e facilmente explicadas.
Os primeiros oito minutos do filme apresentam em câmera lenta o fim do planeta terra, acompanhados de uma musica clássica altíssima. É possível ver a expressão de tristeza e conformismo no rosto dos personagens, não há mais o que fazer. Acabou. E só a partir dos nove minutos é que a história em si realmente começa, antes do momento fatídico apresentado para nós no inicio.
Conhecemos Justine, interpretada pela Kirsten Dunst, que acabou de se casar e está indo para a festa de comemoração. Ela parece estar feliz, até que, sua mãe faz um discurso bastante perturbador no jantar de casamento e ai, a expressão facial da moça muda. Ela começa a demonstrar os primeiros sinais de uma crise depressiva.
E aqui começamos a ver que tem algo de errado com Justine, que sem avisar ninguém, simplesmente sai do jantar, pega um carrinho de golfe e dirige pela propriedade a esmo. Ela não se importa nem quando parte do seu vestido de noiva fica preso em uma parte do carrinho. Apenas puxa-o com violência, rasgando-o como se não fosse nada. E esta é apenas uma das muitas cenas incomodas que a moça faz durante o filme.
Na primeira meia hora de filme podemos ver a luta desesperada de Justine para omitir o fato de que tem depressão e as cobranças da irmã, Claire, para que ela “aproveite” a festa e “se divirta”. Agora, quem sofre com depressão muitas vezes não consegue ter uma experiência positiva em situações que para muitas outras pessoas são bastante prazerosas e é o caso de Justine. O pior é quando a irmã diz que ela não pode contar sobre o que está passando ao noivo e ela responde “você acha que eu sou louca de contar?”
Teoricamente, o casamento é o dia mais feliz de uma mulher, talvez por isso este tenha sido o cenário de fundo escolhido para tratar do assunto depressão, já que fica claro que Justine não consegue ficar feliz com toda a situação a sua volta. No começo do filme ela ainda se esforça para parecer alegre, mas por volta dos 30 minutos, podemos ver que o sorriso é forçado e que o que ela mais deseja é chorar e se esconder em algum canto. Sinais típicos da depressão.
Exige-se que ela esteja feliz, pelo casamento, pela festa cara, pelo fato de que mesmo a mãe sendo contra ela oficializou a união, mas ninguém parece querer perguntar se ela se sente feliz ou se ela quer estar feliz. E de todas as pessoas presentes na festa, incluído os pais divorciados da noiva, a irmã neurótica e o cunhado agressivo, o único que parece se preocupar com Justine e notar seu estado mental delicado é o marido.
Um detalhe interessante é que em certo ponto do filme, cuja primeira parte se passa durante a festa de casamento, estão tocando “smile”, musica originalmente interpretada por Judy Garland cujo titulo significa “sorria”. A música serviu como uma ironia delicada para a situação complexa da personagem, que precisa fingir estar feliz para não preocupar e agradar a família, quando podemos ver que ela na verdade está a beira das lágrimas e tudo fica ainda pior a cada pessoa que pergunta se ela, Justine, está feliz.
Todos os membros da família de Justine parecem desprovidos de sentimentos, eles a tratam como se ela fosse um estorvo, algo que só dá trabalho e desgosto e ninguém parece querer enxergar o problema pelo qual a moça está passando. Uma crise depressiva no dia do seu casamento.
O filme faz uma abordagem limpa e clara sobre a depressão, que é uma doença silenciosa e por não deixar seqüelas visivelmente físicas, é tratada muitas vezes como algo inventado e quase nunca levada a sério. Diariamente, muitas pessoas cometem suicídio ou entram em ostracismo social por conta da depressão. E posso dizer que me identifiquei com Justine, pois também sofro de depressão e recebo constantes cobranças para sorrir e ser feliz, como se isso fosse algum botão que a gente aperta dentro da cabeça e as coisas simplesmente mudam. Todos os personagens exigem felicidade dela, como se fosse algo automático e esperado de todo ser humano.
E também fica claro durante o desenvolvimento do filme, como o estado depressivo de Justine está começando a afetar o marido, que se vê desesperado em não conseguir alegrar a esposa e nem ser visto por ela como um aliado.
O mais interessante é que, apesar de eu ter dito a palavra “depressão” diversas vezes nesta review, em nenhum momento ela é falada no filme. A irmã de Justine chama o que ela esta passando de “chilique”, a mãe se faz de insensível e o pai de idiota. Ninguém chama a doença pelo nome, é como se quisessem fingir que a moça não tem um problema. As coisas vão ficando cada vez mais tensas e complexas e o que começou como um casamento feliz começa a se afundar em uma terrível tristeza sombria.
Falando dos filmes do Von Trier, quase todos eles têm algumas peculiaridades repetitivas, como por exemplo, todo filme dele (com exceção de Dogville e Manderlay que foram produzidos sob as regras do Dogma 95), tem de 5 a 10 minutos de música instrumental e cenas em câmera lenta. Todos eles também são divididos em pelo menos três partes (com exceção de Ninfomaníaca, que foi dividido em dois volumes, cada um com três partes distintas).
Em Melancolia em específico, a filmagem tem um viés documental, com câmeras tremulas e que giram freneticamente para cobrir todas as pessoas presentes no espaço e imagens levemente borradas. Isso pode ser incomodo para alguns espectadores que estão mais acostumados com a filmagem uniforme hollywoodiana. Além de usar o efeito narrativo reverso, começando pelo fim, como foi feito no filme irreversível de Gaspar Noé.
Também vale citar que no elenco temos outros nomes de peso além do de Kirsten, como Udo Kier, John Hurt, Kiefer Sutherland e Charlotte Gainsbourg (que já protagonizou outro filme de Von Trier, Anticristo, junto de William Defoe) além de Alexander Skarsgard (irmão de Bill Skarsgard que interpretou o palhaço Pennywise no remake de IT) no papel de noivo
Agora, tudo isso que eu falei foi referente apenas a parte 1 – Justine. A parte 2 é focada na irmã da moça, Claire. Nesta parte, que se passa após a festa de casamento, vemos os esforços dela para cuidar de Justine, cuja depressão piorou muito e ela agora é apenas um fantasma da bela moça do começo do filme. E nesta segunda parte, vemos as coisas do ponto de vista de Claire, sob um ângulo mais racional e prático.
também é nesta segunda metade do filme que vemos como é para a família que convive com uma pessoa que está passando por um quadro profundo de depressão, os esforços diários para fazer com que a pessoa se alimente, tome banho e ande alguns passos para fora da casa.
O titulo do filme se refere a um planeta que está vindo em rota de colisão com a terra, ao mesmo tempo em que também representa um estado de espírito muito comum das pessoas que sofrem de depressão, a melancolia, sensação de tristeza extrema.
Enfim, o filme é uma representação sincera do que é uma pessoa com depressão, nem sempre ela estará se desmanchando de chorar, muitas vezes ela também não aparentará estar triste, mas tudo isso é uma estratégia para que as pessoas a volta dela não percebam como ela realmente está se sentindo.
Ele também é extremamente lento e arrastado e a menos que você tenha muita paciência, nem pense em tentar começar a ver. Existe também muita linguagem simbólica e o elemento final, que aparece no começo do filme, na verdade, se torna bem menos perturbador, se analisarmos tudo pelo qual as irmãs passaram durante toda a película, o fim do mundo até parece um presente, um alívio.
E por fim, não é recomendado para pessoas com quadros de depressão aguda, por conta do teor complexo e explicito da doença apresentados no longa-metragem.
“E quando eu digo que estamos sozinhos. Estamos sozinhos.”
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