Veludo Azul
Outro dia conversando com um amigo sobre filmes e diretores favoritos, me dei conta de que os únicos contatos que eu havia tido com algum filme do David Lynch foi a minissérie Duna e Twin Peaks, e eu nem estou falando do filme “Twin Peaks - O fogo anda comigo”, mas sim da série de tevê. E foi quando eu percebi que havia chegado a hora de ver pelo menos um longa-metragem desse diretor, as opções estavam entre “Veludo azul” e “Eraserhead”, mas como esse segundo é bastante experimental e eu não tenho tido estômago pra esse tipo de conteúdo, optei pelo primeiro.
Lumbertown parece uma daquelas cidadezinhas americanas clássicas, onde tudo está sempre certo e nada de mal nunca acontece. Bom, pelo menos essa é a ideia que temos nos primeiros dois minutos do filme, até que um homem que está regando o jardim tem um enfarte súbito.
E então somos apresentados ao protagonista, Jeffrey, o (ainda jovem e desconhecido) Kyle Maclachlan, o qual, alguns anos depois interpretaria o agente Dale Cooper em Twin Peaks.

Ele é o filho do homem que sofreu o enfarte e após visitar o pai no hospital, o rapaz passa por um terreno baldio onde recolhe algumas pedras para tentar atirar em um tambor distante. E durante a busca por mais munição é que ele encontra a peça que dá o ponta-pé inicial do filme. Uma orelha humana decepada. Ele então recolhe a orelha e leva até a delegacia, iniciando uma investigação em cima do terreno baldio onde a parte do corpo foi encontrada.
A partir daí, apesar do xerife ter deixado claro para Jeffrey de que ele não pode se envolver com a investigação, o rapaz que está obcecado com a orelha decepada e com as possíveis provas que poderia descobrir no apartamento de uma cantora de cabaré chamada Dorothy Vallens, apontada como a principal suspeita.
Auxiliado pela filha do xerife, Sandy, ele inicia uma investigação amadora que o impulsiona a mergulhar cada vez mais fundo atrás de respostas, mas a cada nova informação descoberta, o rapaz começa a ser engolido por uma trama macabra e doentia que também é extremamente perigosa.

O filme começa com uma narrativa bem simples, dois jovens idiotas tentando solucionar um suposto crime da cidade. Mas conforme o enredo vai se desenrolando, podemos ver que a narrativa é bem mais complexa do que aparentava ser na primeira meia hora da película e com detalhes psicologicamente bastante perturbadores.
E eu me lembro vagamente de ter visto alguns pedaços soltos de Veludo azul quando ainda era criança e adormeci na sala enquanto meus pais assistiam televisão. Claro que eu só me lembrava de uma cena emblemática e claro que tinha de ser do “cara mau”.
Ele tem uma série de peculiaridades dignas de serem analisadas por um psiquiatra forense, mas, a que eu me lembrava sempre que ouvia falar sobre o filme era a mascara de oxigênio portátil que ele carregava e da qual inalava em momentos específicos. E eu posso afirmar aqui que Frank é um dos personagens mais psicologicamente complexos, perturbadores e doentios que eu já vi em um filme de suspense policial, perdendo apenas talvez para John Doe de Seven.

Existe também uma grande carga sexual no enredo, focado em fetiches doentios e perversões psicológicas suficientes para chocar qualquer espectador desavisado que não esteja a par da narrativa absurda apresentada por Lynch em suas produções. Há um bocado de nudez, mas apesar de todo o teor sexual, não existe nenhuma cena detalhada de sexo. Não, as perversões ficam no campo do simbolismo, nos obrigando a deduzir coisas extremamente doentias através de pequenas pistas fornecidas pelos personagens.
Também é possível ver o amadurecimento deturpado de Jeffrey, que vai de jovem inocente e apaixonado pela jovem Sandy, que se enfiou em uma complexa trama macabra à um homem dominado por seus impulsos mais primitivos, despertados e alimentados pela cantora Dorothy e como isso passa a assombrá-lo com o desenrolar do filme.
O título do filme tem dois significados, a música “Blue velvet” cantada e tocada a exaustão durante a produção e um estranho e doentio fetiche de Frank envolvendo pedaços do tecido azul. Não posso dar mais detalhes sem correr o risco de apresentar spoilers.

Também vale citar que existem várias referências indiretas a Twin Peaks (série que seria produzida em 1990, quatro anos depois do lançamento de Veludo azul) e há boatos de que Veludo azul foi um protótipo experimental de Lynch para produzir Twin Peaks no futuro. E se você assistiu a série de tevê, como foi o meu caso, vai reconhecer vários pontos em comum apresentados em veludo azul.
Há alguns elementos de filmagem que se tornaram marca registrada de Lynch, como por exemplo, a sobreposição de imagens, o close de certos detalhes específicos, além do jogo de luzes e cores específicas para o cenário em que cada personagem aparece. Destaque para o apartamento da cantora Dorothy, onde o vermelho é quase predominante.
Agora, se você chegou até aqui e está com interesse de ver o filme, preciso alertar sobre alguns pontos chocantes. Existem cenas de abuso físico e violência contra uma personagem feminina e uma possível simulação de estupro. A parte destes detalhes, o filme não é nenhuma produção sustentada pelo gore, na verdade, com exceção da orelha decepada e de uma cena na sequência final do filme, não há sangue ou qualquer cena explicitamente visceral.

Enfim, é um filme totalmente absurdo repleto de bizarrices que somente David Lynch conseguiria produzir (já que além de dirigir, ele também escreveu o roteiro), ou seja, não é uma coisa fácil de digerir e certamente, nada recomendado para os fãs do cinema fast food (já que o filme tem duas horas de duração e a narrativa é bastante arrastada), além de ter sequências de diálogo inteiras que não tem a menor coerência a primeira vista.
Não é um filme que entrega tudo mastigado pra gente, na verdade, o roteiro deixa muitas lacunas que devem ser preenchidas pelo espectador através da livre interpretação, mas tenho de confessar que achei o desfecho final bastante piegas e pratico demais e confesso que esperava algum tipo de revelação chocante, especialmente relacionado a Dorothy, mas, ainda assim é um bom filme de suspense policial com altas doses da velha receita de bizarrices Lynch.

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